segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Má e Fada

Vamos considerar que todos cultivam sonhos. E na maioria das vezes eles são resultados da nossa própria inquietude. Porque a sorte de ser mediano, também é a frustração em não ser nada demais. Seres apolíticos envolvidos na política que é simplesmente existir. A existência é um acordo vital. Pena que muita gente nega o próprio respirar.


Faz-me gostar de vestidos vermelhos, ainda que odeie a cor. Inspira cortes de cabelos e enfeites de laço, ainda que não sejam esteticamente perfeitos ou aceitos. Não espera aceitação e consegue a proeza de gozar do próprio ridículo em uma crítica sagaz de nós mesmos. Sem parecer cruel ou má, mas sendo-a. Porque o mais cruel é quem faz do beliscão afago.

Para uns um marco da cultura pop. Outros tantos a consideram apenas uma campanha publicitária fracassada. Mas onde está o fracasso? No pouco entendimento que temos de suas colocações? Ou na sutileza com que nos mostra o que somos sem cobrar que sejamos melhores, mais quem sabe apenas menos ridículos?

Quem hoje não se importa com peso? Alguém audacioso enfrenta a família e seus ideais sem preocupar-se com as retaliações na mesada ou na roupa lavada? Quem mistura má com fada em uma dicotomia de serenidade e assertividade no que diz?


Quando estou em crise, me apego à Mafalda. Porque talvez a minha vontade seja habitar em uma tira. O que será escrito no meu balão? Não sei. Mas nos dela foram escritas algumas das poucas certezas que tenho na vida. São muitas as aspirações humanas, mas considero manter a atualidade uma das proezas de nossa natureza. Prever o futuro? Viver no passado? Uni-vos! Mafalda mantém-se viva e pulsante, porque Belchior já previa: “ainda somos os mesmos e vivemos”.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Não passa, primavera



Prima da Vera
Primavera
Uma nova idade
Cores e flores espalhadas pelo caminho

Um ar mais sereno
Atmosfera amena
Fim de ano
Coisas acometidas pela bondade

Tema de música
Poesia de buquê
Flores mortas ou de plástico
Bailando como enfeites de mesa

Primavera que vem e vai

Que leva e traz amores de outrora
Espanta-me que tu comemores
Pois já não se abaixa para sentir perfumes

Não passa, primavera
Sem me deixar um alento
Colo protegido ou uma cor quente
Deixa-me uma pétala de esperança


"Quem me dera poder, consertar tudo que eu fiz".
Primavera - Los Hermanos

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

O dia que desci antes da parada

Tem dias que começam cansados. É a soneca esticada que apita e ensurdece o quarto todo com o barulho da responsabilidade. São os raios de sol que entram pela porta em um das mais velhas estratégias das mães, que é acender a lâmpada bem na sua cara. Alguns vão dizer: nossa, ainda precisa de mãe pra acordar? Digo-lhes: os gritos maternos são mais eficientes e acolhedores que bipes de smartphones. E sim, é uma visão romântica. 

Tem dias que ônibus está cheio demais, mas a lotação é a mesma de sempre. Tem dias que não é suportável a falta de educação e/ou gentileza das pessoas em pegar sua mochila. Tem hora que não dá pra aguentar as pessoas que insistem em se esfregar de forma abusiva nas suas costas, leia-se bunda. Enfim, tem dias que não dá. Era pra ser aquele feriado que você teria abertura de escolher um dia no mês para simplesmente mandar um sms pro chefe com a seguinte redação: hoje é meu feriado, pelo simples motivo de “não sou obrigada”. 

São dias fuzilantes em que a ruga não sai da testa. Em que o “bom dia” soa mais falso que nos outros dias e que o calor dobra na cidade litorânea. Muitos irão dizer: mais um depoimento rabugento de quem não sabe viver a vida. “Viver a vida”, se fosse a novela de Manoel Carlos seria tão bom. Leblon, café na praia e cafezinho na livraria. Tão bom não conhecer os dilemas das pessoas além do simples fato de “com qual dos gêmeos ficar”. A inquietude de viver dias como esse traz um pouco de lucidez maluca. Atrasada, bolsa pesada, calor. Vou descer da budega desse ônibus. E o atraso? Só vai alongar. Bom para os músculos.

Desci. Agora vou escutar minhas músicas mais agressivas, vou focar naquele cheiro de mar que encontro todo dia naquele ponto, no cafezinho da tia e na água gelada do bebedouro. Olha, tem coisa boa depois daqui. Às vezes é preciso ter coragem de descer da condução, deixar de ser sardinha, corrimão de escada. Depois de fantasiar vários desaforos que eu iria falar hoje, eu me renovo. Porque sei que nenhum deles valeria à pena e me marcariam de forma ruim e agressiva. Simplesmente desci e deixei a vida continuar naquela lotação. Porque muitas vezes o esforço imenso que empreendemos para nos sentir parte de um mundo não corresponde à grandeza de mundos que temos em nós. Desça antes do ponto. Não perdemos por esperar.

Próximo. 

Trilha sonora: "Último pôr-do-sol" - Lenine
"Eu fiquei sentindo saudades do que não foi".